quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Demônios na noite fria

- Creio que lhe matei em nosso ultimo encontro.
- Deveras, me mataste, tenebroso. Vim lhe pedir perdão por minha presunção. Eu era jovem e tolo.
Derek levantou o cetro de rei do firmamento, um fálico pedaço de penumbra apodrecida e, de seu trono de meia-noites, ordenou que se fizesse a treva.
O salão era pedra lisa e cinzenta, o coração da noite fria,  palácio do guardião, fora esculpido em sono e pesadelo. Não haviam velas ou meios mecânicos de claridade, só a grande porta de entrada talhada em rocha virgem e as mais malditas palavras da língua morta.
Ele fechou os olhos e se concentrou em uma memória a muito perdida. A criatura a sua frente, em algum momento que a peste engoliu, levantou espada e palavra contra ele. Eram noites pesadoras de um período roto da cristandade, e ele, sacerdote que era, tornou-se furioso pela negação do absoluto poderio do abismo.
- Eu lhe destruí e viestes pedir perdão?
A coisa sorriu, dentes pontudos e pálidos, impecavelmente belos e ferozes. Era um corpo sem gênero ou vestimenta, humano e falho, de costelas salientes e cabelos longos e acobreados. Os olhos eram duas piscinas cálidas e esverdeadas, e os braços, curtos e firmes, terminavam em mãos pontudas cheias de garras.
- De certo isto é inesperado, acredito, mas ainda assim rogo para que esqueças da desfeita que te fiz, tenebroso.
O lasombra levou a mão livre ao queixo e ordenou que o trono crescesse. Era uma coisa vil, líquida e saliente, da qual transbordavam olhos cegos e apêndices membranosos que teimavam incessantemente em fugir do refúgio da noite fria e levar o terror do mundo-espelho  ao mundo-carne.
- Se não tivesses invadido meu manso, eu nunca mais recordaria de suas palavras ou ações, demônio. Nós não vemos o tempo da mesma maneira, você e eu.
- De fato, não. Foram dois séculos no inferno esculpindo minha forma para que pudesse retornar, e o fiz gritando e chorando, pois este é o quinhão dos derrotados. Uma dor ínfima se comparada a cair do céu, entenda, mas ainda assim um processo nada agradável.
- Compreendo.
Uma longa pausa. Derek não compreendia, nem tão pouco se importava. Ele mais uma vez chamou o escuro e pintou o chão e as paredes de nanquim. Ele não gostava da claridade dos olhos do visitante.
- Entenda, lorde rimador, que meu povo há muito busca contato com seus mestres. Há muito que podemos ganhar na batalha que esta por vir. Uma aliança, o mundo morto e o mundo em chamas, e certamente a vitória será nossa.
Derek considerou as implicações por um instante e usou de um comando mental para dar ordens a seus peões. Pensou em sua cria germânica e se assegurou de que estava protegida, pensou em sua aliada Tzimisce e ordenou que ela se fortalecesse em sangue virgem para o inverno vindouro. Pensou em sua senhora para sempre consumida e sussurrou seu nome. Pensou na promessa do abismo.
"Pois nove são os ciclos da alma, nove são as verdades do abismo, e nove são os legados de teu avô."
- O abismo não tem interesse em negociar com os caídos, demônio. Eu falo pelos mortos quando digo que sua guerra mesquinha não nos interessa. Nós somos a treva que antecede a primeira luz, e somos a treva que reinará quando a chama do demiurgo se apagar. Somos o início e o fim, somos o tudo no nada, somos os rimadores que criaram o verbo e os detentores das nove verdades.
O demônio franziu a testa, descrente.
- Meus senhores não tocam o abismo, mas bem podem tocar esse plano. Não os queremos como inimigos, rimador, propomos aliança e o fazemos com a mão direita, propomos lealdade e o fazemos de livre vontade. Não tome nossa gentileza como meia-verdade.
Derek estalou os dedos e a realidade se partiu.
Fragmentos do escuro vidro derretido caíram em cascata sobre o momento, roubando a cor e a força do demônio. Ele caiu e se contorceu, gemendo e se contorcendo mais uma vez, a procura do tato perdido no mergulho vertical nas eternas trevas do mundo não-nascido. Um trovão ecoou na imensidão escura, um pensamento rimado por mil legiões famintas, um sopro da inteligência ancestral dos deuses abortados.
Derek estalou os dedos novamente, e o som foi um chicote na consciência torturada da criatura que lentamente retornava a existir.
- Você vê, demônio? Temos pouca necessidade de aliança com teu reino.
O demônio vomitava um líquido escuro e pegajoso, pedaços de seu invólucro que se descolaram da pele e dos ossos na curta jornada a casa dos perdidos. Seus olhos e ouvidos sangravam e haviam poros escuros brotando de sua têmpora.
- Perdoe-me pela rispidez, mas é tarde e estou cansado. Creio que seus superiores lhe deram um prazo para conseguir sua aliança, providenciarei-lhe um quarto a altura de sua nobreza, e continuaremos esta conversa nos anos que ainda lhe restarem, Adramelech.
O som do nome fez o demônio se perder em meio ao vômito e tentar gritar, gorfando pateticamente em chiados roucos e sujos. Um circulo púrpura brilhou em volta do demônio que sentiu o pouco que lhe restava ser drenado.
- Vocês gritam seus nomes quando descem a minha casa, gritam a plenos pulmões, ainda que os mesmos sejam falsos. Temo que tenha pouco a aprender de ti, mas gostaria de conversar com teu mestre, se for possível. De qualquer modo, durma e descanse, amanhã terá uma longa noite, convidarei uma amiga para se juntar a nós, uma Tzimisce. Não compreende o que isso significa, não é? - Derek sorriu, pela primeira vez em muito tempo - Ela é uma neta de Eldest, uma das tocadas por sua parente, Kupala. Estes nomes você conhece. Durma bem.
O demônio buscou forças inutilmente, a cada tentativa pífia de movimento, o círculo pulsava e a dor se fazia ainda mais presente. Ele chamou o inferno e não obteve resposta, chamou pelas almas que havia acorrentado e elas se provaram incapazes de se manifestar.
Por fim chamou por deus e, mais uma vez, só obteve silêncio.